quinta-feira, setembro 13, 2018

Ensaio...

Tinham conversado sobre isto já há muito tempo.
Não sabiam na altura que essas palavras iriam ficar enquistadas num e noutro como uma verdade à espera de acontecer.
Começou leviana a conversa, numa esgrima de ideias que tanto apreciavam, sempre ditas com a verdade inacessível à família e aos amantes, entre eles não se abriam feridas nem teciam melindres.
Sempre souberam que de alguma forma enriqueciam a vida um do outro, e que o que os unia tinha sido urdido lentamente, com a solidez das montanhas, e que resistiria a qualquer intempérie.
Mas sobre isto nunca falaram, não fazia falta!
A vida de cada um corria livre, sem o outro. Com os amores, desamores, projectos, conquistas e desalentos de cada um, e nem sempre partilhados, quase nunca aliás.

Mas a conversa....

- ...não tenho medo de morrer sozinho - tinha dito ele às tantas - não quero é ficar por cá a arrastar-me e a apodrecer aos bocadinhos. A mijar a calças e a babar-me, sem saber quem sou. Mas também, nessa altura já nem vou saber o que quero.
- a mim não me agrada a ideia do corpo doente, do cheiro, da cor, da dependência. E não consigo conceber uma dor persistente e intolerável. Quero morrer de repente - respondeu ela.
- isso toda a gente quer!  - riu-se ele

Falavam da morte como se não lhes tocasse. Uma coisa banal. Entidade estrangeira e distante.

- Está decidido - terá dito ela às tantas - não te deixo morrer sozinho!

E assim terá acabado a conversa.
Não se lembram quantos anos passaram.
Muitos.

Ela só soube da doença dele há pouco tempo. Não interessam os pormenores, que só dizem respeito a quem os vive.
Esteve lá. Naturalmente.
E olharam os dois de frente para um fim que afinal existia também para eles. Com a mesma verdade de sempre. Sem medo dos afectos nem das palavras.

Ontem ligou-lhe e disse-lhe:
- É amanhã que vou morrer. - o tom era pragmático e decidido. Não iria dissuadi-lo. Na verdade nem queria. Era afinal a única decisão que lhe poderia caber.

Chegou cedo.
Não trocaram muitas palavras.
Comeram juntos.
No final de refeição ele levantou-se, pegou nuns comprimidos, olhou-a com os olhos rasos de lágrimas e com um sorriso doce e cúmplice. E bebeu-os com o ultimo gole de vinho.

Sentaram-se os dois no sofá.
Não haveria choro, angustia, medo ou desespero.
Encostou a cabeça no colo dela, gesto nada comum entre os dois, a mão dela passeou pelos seus cabelos.
E assim ficaram, serenos.

Não te deixo morrer sozinho.


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