terça-feira, setembro 15, 2020

A margarida na minha enciclopédia

Voltei a inscrever-me (mais uma vez mesmo em cima do joelho) num campeonato de escrita criativa, com um empurraózinho da Redonda

Segue o primero desafio:


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A avó estava deitada dentro da caixa forrada a veludo. A madeira brilhava muito, como se tivesse um plástico lisinho muito bem colado.
Ela lá dentro parecia mais pequenina. Como se, desde ontem, tivesse desaparecido um bocado dela. Não sei bem explicar. Parecia mais pequena, ponto!
Sei que a caixa era um caixão, e que ela, lá dentro, estava morta. Mas não conseguia fugir dos pormenores.

De vez em quando chegava alguém e levantava o paninho branco que lhe tapava a cara. Espreitei algumas vezes mas não consegui vê-la. Imaginava-a como os esqueletos dos filmes. Mesmo sabendo que devia estar muito parecida com o que estava ontem esperava ver qualquer coisa assustadora, afinal a mãe tinha-me proibido de a ver...
A mãe.

A mãe estava triste. Mas não chorava como eu choro quando estou triste.

Nunca vi a mãe chorar.

Na outra sala riam-se de qualquer coisa. A Maria tinha preparado uns croquetes, daqueles que eu gosto tanto, mas não conseguia comer nenhum. Parece que a minha fome morreu com a avó.

 

Depois chegou a Margarida.

Está com 11 anos, um a mais do que eu, e é linda. Os cabelos pretos estavam penteados em duas tranças e davam-lhe um ar mais crescido. Ou talvez fosse o vestido. Ela nunca usava vestidos.
Sentámo-nos no último degrau, longe das conversas dos adultos. Falou-me durante muito tempo do Chuck, o cão, do que aconteceu quando ele morreu, e eu sem coragem de lhe pedir que parasse, sentia os meus olhos a encherem-se de lágrimas. Não ia conseguir ser forte como a minha mãe.

A Margarida calou-se, olhou mesmo para mim, e deu-me um beijo, devagar, nos lábios.

 

Nessa noite desci e fui buscar uma margarida às flores da avó, guardei-a entre as páginas da minha enciclopédia, mesmo ao pé da palavra “sentir”.

 

 


8 comentários:

  1. Bendito empurrão da Gábi!!!

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    1. Estímulos para escrever são sempre bem vindos!

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  2. É ficção, todavia, ao lê-la, isso foi esquecido, e senti-me lá, senti-me a sentir todos aqueles sentimentos antagónicos, e que não se esperam, numa situação dessas, e que eu já experienciei.

    Parabéns, Boop

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    1. Somos todos feitos da mesma massa. :)
      É esse o melhor prazer da leitura, encontrarmo-nos connosco próprios nas palavras de outros.

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  3. Gostei muito!
    (e fiquei orgulhosa com a menção ao empurrão, assim de uma pequenina forma contribui para este texto :)

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  4. Instigante mas muito belo! Parabéns :))
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    Sinto, que meu corpo se perde do teu laço
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    Beijos, e um excelente dia :)

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