quarta-feira, junho 30, 2021

Moçambique, a terra prometida.

A história dos descobrimentos que está descrita nos nossos manuais escolares traz-nos uma visão europeia, estratega, intelectualizada de uma época que todos sabemos pouco ter tido de cor de rosa 

Paulina Chiziane, no seu livro “O alegre canto da perdiz” conta-nos, num registo outro, mais impregnado de magia e inocência, mas não menos sério, como Moçambique foi tomado, brutalmente violado, nas suas vivências e nos seus costumes pelo homem branco.

Ela é considerada a primeira mulher moçambicana a escrever um romance.

Ainda só li 100 páginas, tenho muito caminho para andar, mas quis deixar-vos este excerto: sei que é longo mas eu acho que vale muito a pena!

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 “Era uma vez uns navegadores que se fizeram ao mar. Iam a caminho da Índia, em busca de pimenta e piri-piri, para melhorar o paladar das suas refeições de bacalhau e sardinha. Quando passavam pelo oceano Índico, começaram a sentir vontades. De repousar. Ou de urinar. De pisar a terra firme e olhar para o mar. Talvez. Ou foram atraídos pelo maravilhoso canto das sereias. Atracaram.

Descobriram que a terra era imensa, com hipopótamos, crocodilos, elefantes e muitos pretos. A terra tinha onze sereias. O’hipiti, que chamaram ilha de Moçambique. Nampula. Inhambane. Cabo Delgado. Zambézia. Maputo, Niassa. Tete. Gaza. Sofala. Manica. De todas as sereias, a Zambézia era a mais bela. Os marinheiros invadiram-na e amaram-na furiosamente, como se invade a mulher amada. A Zambézia bela, encantada, gritava em orgasmo pleno: vem, marinheiro, ama-me, eu te darei um filho. Eu e tu, sempre juntos, criando uma nova raça. Em todo o lado deixaremos marcas do nosso amor. Deixaremos um mulato em cada grão de areia, para celebrarmos a tua passagem por este mundo!

No princípio de tudo, os povos da terra acreditavam em Zuze, o deus do mar. Acreditavam que no fundo do mar residiam todas as maravilhas da terra prometida. Achavam que o mar era a residência de todos os espíritos bons. Foi por isso que olharam para os navegadores como fiéis mensageiros do Grande Espírito, por terem a cor clara de alguns peixes de águas profundas.

Então, os reis trajaram os melhores enfeites para receber condignamente os mensageiros dos deuses. Com batucas, danças e tudo. Puseram as donzelas mais lindas a requebrarem-se na dança do tufo e do nhambarro. Por outro lado, os súbditos do reino desfilavam com galinhas, cocos, bananas, papaias, ouro e marfim para oferecer os visitantes do fundo do mar. Fiquem aqui, marinheiros e fecundem estás donzelas, rogavam os reis, soltem algumas das vossas sementes nestas terras para a eterna celebração da vossa passagem por estes trópicos.

(…) Fizeram tudo para os visitantes não saírem dali. Mas os teimosos marinheiros partiram sem despedida. Bruxaria de preto não faz efeito no branco, comentaram amargamente. Como estavam enganados! Pouco depois os marinheiros regressaram, arrasados por uma paixão dourada. Com canhões, espingardas, chicote e muito vinho, para fazer a limpeza da terra e entorpecer os incómodos. Tinham achado a terra prometida.

Os navegadores correram de aldeia em aldeia, derramando sangue, profanando túmulos, pervertendo a história, fazendo o impensável. A Zambézia abriu o seu corpo de mulher e se engravidou de espinhos e fel. Em nome desse amor se conheceram momentos de eterno tormento e as lágrimas tornaram-se um rio inesgotável no rosto das mulheres. As dores de parto se tornaram eternas, os filhos nasciam apenas para morrer, eram carne para canhão. O povo tentou, inutilmente, transformar os corações em pedra para fugir à dor, à morte, à opressão.

(…)

Foi assim que começou a história do José muitos séculos antes do seu nascimento.(…)”

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