terça-feira, janeiro 28, 2020

Voltar a escrever

Festival de estátuas vivas Tomar 2019


Chegava por volta das 17h com o seu trolley, e sem pressas preparava a sua preformance. É assim que lhe chama.
Já conhecia bem os ritmos do jardim. Sabia onde passava mais gente, quais as árvores que no verão lhe emprestavam a sua sombra, e onde o sol se demorava nas tardes frias do inverno. Sabia que tinha de fugir dos Jacarandás na primavera, e do grande Carvalho que na despedida do verão chora folhas douradas que devagar vão formando um mar escorregadio de castanhos e vermelhos.
Tinha decidido ser homem estátua um dia em Barcelona onde, com o fascínio que só se tem aos oito anos, tinha visto a sua primeira estátua - um homem de ferro que parecia ter derretido e tinha a cabeça no meio do peito. Uma visão inusitada que tinha encontrado um lugar central na sua fantasia, e a partir da qual tinha construído mil histórias.
Uma vez montada a estrutura, ocupava o seu lugar. Ficar horas na mesma posição requer treino, isso soube desde o primeiro momento. Desde criança foi aprendendo sozinho a arte da imobilidade. E sem saber atribuir nomes, significações, ou estabelecer grandes nexos causais, foi dominando as técnicas para evitar contraturas, dormências, comichões, ou aquelas inconvenientes urgências do sistema excretor.
E depois era esperar! Ninguém sabe ao certo pelo que espera um homem estátua. Porque na verdade é preciso ser um para o saber!
Ele - ele mergulha no jardim. No cheiro da erva cortada, no ondular da água do lago, voa com os pardais, ouve as flores a abrirem, penetra com as formigas na terra e descobre nela o emaranhado das raízes, é o alcatrão dos...
Plim!
Uma moeda.
Num gesto rápido tira o chapéu, encontra os olhos do rapaz de oito anos que olha para ele num fascínio mágico, faz uma vénia e sorri.

5 comentários:

  1. Uma narrativa bela e verdadeira que também me fascina.

    Beijos e um bom dia

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  2. Uma delicia de texto… Por vezes os sonhos não têm de ser impossíveis e as pequenas coisas normalmente preenchem bem mais…

    Uma escrita que me agradou verdadeiramente. Gosto particularmente de ler algo que me faz visualizar e a construção deu-me cada ausência de movimento, cada respirar cada batida de coração… enquanto o homem estátua viajava na sua mente na espera da recompensa pelo seu trabalho.

    Abraço e boa semana

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  3. Uma prosa que, além de conter poesia (e tudo que contém poesia, seja lá o que for, uma tela, uma música ou um texto, torna-se mais especial), abre margens para diferentes perspectivas, significados, maneiras de tocar o leitor. Gostei do texto.

    Sobre o teu comentário na postagem que fiz com o link para os meus poemas na revista InComunidade, vou utilizar, como resposta, algumas das palavras que uma das leitoras do meu blog me enviou: ela escreveu que há pessoas que pensam que para escrever poemas é preciso ser sempre pomposo, grandiloquente, com palavras floreadas, mas que utilizar as palavras dessa maneira é utilizá-las apenas como enfeite. "Gosto quando as palavras que leio me leem também", ela escreveu. Gostei muito disso porque é exatamente como penso quando eu mesmo estou diante de um texto como leitor. E como autor, alegra-me muito quando, através da simplicidade, consigo criar esse tipo de ponte de diálogo com quem está lendo. Na minha opinião, um texto em prosa ou um poema não servem apenas para serem bonitos, é melhor quando, de algum modo, provocam algum questionamento, levantam dúvidas, mais do que respostas, por isso assumo, sim, as minhas sombras, o melhor e o pior de mim. Sobre o cigarro, digo apenas que não sou - nem quero ser - um exemplar de saúde, isso eu deixo para quem prefere exibir mais o corpo do que o que está dentro da mente (e desnudar a alma é sempre mais difícil, muito mais revelador, comprometedor, por isso há mais gente no mundo mostrando mais do que há por fora do que o que há por dentro, até porque esses sabem que se mostrassem o que há por dentro não impressionariam ninguém). Sigamos! Um abraço.

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  4. Gostei muito
    A história no Jardim Público, certo?
    Gostei da história e sobretudo de como está escrita
    Queria poder ler as outras também

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  5. Vou publicando outras.
    :)

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