quarta-feira, dezembro 11, 2019

Há despedidas dificeis

Morreste.
Diria "Morreste-me" se essa expressão não tivesse sido usurpada pelo José Luís Peixoto, e não quero usar as palavras de ninguém.

Nunca o tinha tratado por "Tu" Professor.

Lembra-se que quando tinha eu vinte e poucos anos,  começou a tratar-me por "Tu", e como isso foi estranho para mim, preferi o "você", mesmo sendo da idade da sua filha mais velha, e por isso para si o "tu" lhe sair naturalmente.
Estou presa a pormenores...

Falava com alguém nestes dias sobre como se multiplicavam por aí testemunhos (este é talvez mais um deles) em que para além de se dizer "O Professor era ...." se tentava mostrar que também quem escreve terá tido um lugar dentro de si "Ele também gostava de mim!" - parece ser o desejo toscamente revelado por de trás de cada homenagem. - Sim, professor, também fiz a minha tosca homenagem.

Foi com uma ambivalência enorme que participei nas cerimónias fúnebres, porque o sentia tão perto e ao mesmo tempo prevalecia uma impressão que o que aprendi consigo, o que descobri de mim própria, o que cresci, não pertence ao mundo, estranho este conceito... é da esfera do interno e do impartilhavel.
Ajudou-me a certeza de que quereria que lá estivéssemos todos! Os filhos de sangue (que tiveram de ouvir vezes de mais "o seu pai foi muito importante para mim" - como se a sua própria dor não gritasse muito mais alto do que a dessas vozes). E todos os "outros filhos", que cresceram e aprenderam consigo, e que partilharam o encanto deste mundo outro que é a psicanálise.
Sei que ficaria zangado, enfurecido até, se o tivessem deixado, e não tivéssemos aparecido. Isso deixa-me mais tranquila.
Vou contar-lhe: O A.G. levou uma garrafa de bom Whisky para o velório! Bebemos a si! Rimos! Contámos histórias! Ficámos juntos na rua depois de sairmos de ao pé de si. Sei que gostou de saber esta parte!

Mas também chorámos! E cada "irmão" que chegava era recebido com um abraço longo e apertado, e a pergunta: "Como é que tu estás?" - feita com genuíno interesse de olhos nos olhos, como se quiséssemos garantir que o outro suportava a perda. de que nada se estragava, de que permanecia intacto, forte, e eterno dentro do outro. Vai ser assim que o manteremos vivo (nós que não somos os filhos de carne e sangue), trabalhando nos seus livros, transmitindo o que ensinou, e sendo bons terapeutas e psicanalistas.

Lembro-me de uma conversa tão importante para mim nessa altura dos vinte anos, disse-me o professor qualquer coisa como: Os bons terapeutas não são aqueles que sabem muita teoria e conseguem citar livros de cor (mesmo que o professor fizesse isso brilhantemente!), são antes aqueles que no decorrer do seu próprio processo terapêutico mais foram capazes de crescer e de se transformar, são esses que acreditam realmente no processo, que o viveram e o vão conseguir promover.

Como responder à pergunta "Como é que tu estás?"
Estou serena.
Estou triste.
Estou com uma saudade miudinha permanente dentro de mim
Estou feliz por ter ido falar consigo ainda há poucas semanas - não falávamos há tanto tempo!
Comovo-me cada vez que alguém comigo se comove.
Estou orfã, porque nunca mais poderei pedir-lhe um bocadinho para falar consigo.
Estou crescida e capaz de sobreviver muito bem sem si.
Estou carente, e exigente com as pessoas que gosto, porque as quero perto.
...
Estou eu!
(E acredite que o professor era quem melhor saberia o que eu quero dizer com "Estou eu!")

Mas a si quero dizer-lhe que estou bem!




6 comentários:

  1. Descanse em paz Professor Carlos Amaral Dias.

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  2. Conterrâneo.
    Gente boa.
    Coimbra é mesmo uma lição.

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  3. Fizeste uma bela homenagem a Amaral Dias que nunca o que conhecia mas sabia da sua obra que deixou marcas com quem privou com ele.

    Beijos e um bom dia

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  4. Tocaste-me com essa tão sentida homenagem, para alguém que ousou mergulhar profundamente nas caves mais recônditas da alma, enquanto dava a mão a outros que quiseram segui-lo.

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  5. Pelo que vi, era alguém de grande valor para ti (e os que te seguem).

    "Estou eu". Isso é tão conciso e ao mesmo tempo tão amplo de significados... Uma pequena afirmação labiríntica que abre margens para muitas interpretações.

    Um abraço.

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  6. Os amigos não deixam morrer os seus mortos

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