terça-feira, abril 14, 2020

16/35 A Peste

Nestas 4 semanas de confinamento li muito pouco. Terminei 2 livros anteriormente iniciados e li outro. E não conseguia pegar em mais nenhum.
Todos os conteúdos me pareciam desfasados das minhas vivências. Tinha dificuldade em criar o palco interno onde pudessem coexistir novos cenários e personagens co-construídos pelo autor e por mim própria. Porque é assim que lemos não é? Imaginando paisagens, mobilando casarões, criando todos os personagens nos seus mais ínfimos pormenores, emprestando-lhes expressões faciais, tonalidades de voz, gestos, corpos...
Tinha dificuldade em dirigir-me às sugeridas avenidas cheias de gente, aos encontros com desconhecidos, às viagens de comboio. No fundo resistia a entrar no mundo que agora me (nos) está vedado.

Por isso fui buscar o Albert Camus com o seu livro “A Peste”. (Lido em 3 ou 4 dias)
Nele encontrei a angústia de que tenho andado a fugir. Eu sou daquelas pessoas que pouco vê de números da evolução da pandemia, recolho a informação que me aparece como necessária. E faço os possíveis por contribuir para o bem comum com aquilo que está ao meu alcance - de menor ou maior escala, do serenar os meus filhos ao estar disponível para um qualquer contacto de alguém que procure o apaziguamento de uma angústia invasora.
Em “A Peste” podemos encontrar a dedicação de um médico, humanista, e de um punhado de homens que se mobiliza para fazer o possível numa cidade - organismo vivo - que se contorce isolada numa dor sem nome e sem precedente.
Seguimos com ele os passos todos. Da descoberta da doença e do desejo que acompanha este momento de que “não seja nada” até a um final que mesmo com o fim da peste não consegue ser feliz. As perdas são múltiplas. De milhares de anónimos, de alguns amigos, mas a cima de tudo de uma inocência irrecuperável.

Mas nestes quase 80 anos que separam o momento em que Camus escreveu esta parábola e a pandemia que vivemos hoje algo mudou.
Em Camus ficou de fora a solidariedade de um povo (fala apenas da nobreza de alguns).
Hoje sinto que para além do medo (esse bem caracterizado em “A Peste”) há um sentido de comunidade. Sim! Falo das palmas à janela. Falo dos concertos on-line. Falo dos grupos de voluntários que costuram máscaras. Falo do cumprimento das regras para o bem comum. Falo na criatividade de tantos profissionais das mais diferentes áreas para darem a sua contribuição dirigida tanto aos grupos dos profissionais na linha da frente como a todos os outros que se encontram em casa.
Quero crer que crescemos em termos de cidadania.
(Um episódio ficou-me do livro - o momento em que Rieux, o médico, se escapa com um amigo, e juntos vão até ao mar - fora dos limites da quarentena - experimentar um momento de liberdade. Porque nos falta... a liberdade!)


7 comentários:

  1. Tudo na vida evolui. As pessoas, como é normal, fazem parte dessa evolução. Por isso, o que se passou no tempo da Peste e o que se passa agora nesta nova Peste, nada tem de comum a não ser as parecenças entre as Pestes.
    De facto as pessoas estão muito mais solidárias, fraternas, cumpridoras, amigas de ajudar. Valha-nos isso nestes tempos difíceis que todos estamos a passar. Bem hajam

    Uma semana feliz

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  2. Gostei de ler!
    Existe de tudo. Mas sim, somos um povo solidário. (pena que por vezes a ajuda não chegue a quem de direito)
    -
    Segue o meu imaginário ...
    -
    Beijos e uma excelente noite!
    "Protejam-se"

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  3. Creio que temos a vantagem da informação, que as gerações que nos precederam nunca chegaram a ter – apenas o medo e a visão do desconhecido. Há uns dias lias que mesmo quando foi a epidemia do SARS, eram enormes as dificuldades de obter dados atempadamente. Nós, apesar de todas as reclamações que possamos fazer quanto a países que reportam dados incorrectos, temos uma visão global, instantânea. Surpreende-me que sítios como o Worldometer tenham os dados nacionais quase logo a seguir a serem publicados pela DGS. A informação, embora não traga tranquilidade, por vezes pelo contrário, traz claridade, diminui os graus de incerteza. Talvez esteja a ser optimista, mas caramba, é ou não verdade que os otimistas vivem mais, mesmo que seja apenas um delta pequenino? 😊

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  4. Quero solidariedade no gesto de todos e todos os dias.
    Bater palmas consola mas não chega.

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  5. Já li esse livro mas actualmente não leio nenhum porque não estou com vontade. Prefiro ler aqui coisas que me fazem alegrar mas muito longe das teorias da conspiração vomitadas muitos vendedores da banha da cobra.
    Sempre fui solidária e continuo a ser, mas muito esquecem-se rápido depois das catástrofes regressando ao seu umbigo.

    Abraços e um bom dia

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  6. talvez tenhas explicado o porquê do meu afastamento dos livros...

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  7. Desta situação não devemos esquecer a SOLIDARIEDADE.
    Não devemos esquecê-la nem deixar de a praticar quando o momento não for mais de urgência.

    Oiço muito falar da solidariedade por Portugal e identifico-me com ela. Aqui no Reino Unido, não a sinto, não a vejo. As pessoas ainda gozam com quem usa máscara e a noção de "solidariedade" para eles não é como a nossa. Nós realmente ajudamos. Eles "dizem ajudar" parcialmente e depois fazem negócio. Só querem ficar bem na figura. Fica bem ser solitário. Então durante o ano inteiro existem inumeras instituições de solidariedade para as quais podes contribuir, tens essa informação quando compras algo no supermercado, nas lojas, nos cartazes nos autocarros, nos cúbiculos dos WCs e inúmeros anúncios televisivos em que pedem dinheiro usando e abusando de imagens chocantes com crianças, idosos, dezenas de animais etc... Só pedem dinheiro, cash, claro. Para instituições que supostamente fazem o "milagre" do bem-estar naqueles rostos infantis em lágrimas e miséria. (há anos que não parecem ser capazes de as exterminar, que seria o ideal).

    Mas é isso solidariedade?
    Não creio.
    Estão é a usar a palavra solidariedade para angariar dinheiro.
    Solidariedade é humano, é a presença, o calor, o gesto.

    Não é a conta bancária a descontar 10 libras todo o mes para este ou aquele.

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