terça-feira, maio 05, 2020

Na tua varanda

O clandestino - Carlos Farinha
O clandestino - Carlos Farinha (Agosto 2020)

Estávamos num daqueles dias em que o sol, ao beijar o horizonte na despedida, faz corar o céu e as nuvens, que rubros testemunham o despudor com que o astro rei se traveste de mil rubis, e se deixa engolir, lentamente, tingindo o mar de amor e sangue.
Há algo de simultaneamente sereno e eléctrico num entardecer como este. E os olhares ficam cativos desse céu incomum como que procurando (ou projectando) nele a chama por que anseiam, perdidos que andam em vidas monocromáticas de tons pastel.
Eu (tu sabes bem) trago cá dentro o fogo que acendeste em mim. Um calor que evoco mesmo sem querer, na pele que antecipa o teu toque, nos lábios que demandam a tua boca. Sinto o rosto afogueado por um desejo incontido, um saber que só nos teus braços, numa leitura táctil e visceral, me vou encontrar verdadeiramente a mim mesma. Não sei explicar-te melhor. Sinto-o. Não sei dizê-lo. Não ainda.
Já me tinhas falado vezes infindas da tua varanda virada a nascente de onde vês o sol despontar em noites insones. Construí-a, à varanda, na minha cabeça com todo o pormenor. Um terraço amplo, despido, de tijoleira clara, nele terias um estendal daqueles altos de arames esticados, e uma ou duas cadeiras baratas de jardim onde te sentarias ao fim do dia com um maço de cigarros e uma cerveja e te deixarias perder num pensamento errante com o olhar solto na magnífica vista sobre o casario e o rio lá ao fundo. Verias a entrada e saída dos paquetes? E as velas dos pequenos barcos que ao fim de semana enchem o rio? Quase tenho medo de perguntar-te se nesses momentos te lembras de mim...
Hoje, não sei porquê hoje, convidaste-me a subir. 
O meu coração está num cliché: descompassado. 
Sinto o que todos os apaixonados sentem, mas que para mim é único. Curiosa esta condição de quem ama, de se sentir intraduzível, único, especial. Como cada encontro de dois é impartilhavel e indizível. 
Eu digo-te a ti. Digo-me a ti.
Quando me tomas num abraço e a fronteira da minha pele se dilui na tua. É aí que me digo. Quando as bocas se falam celebrando o encontro e antecipando a falta que terão uma da outra. Digo-me!
E como nasce de mim qualquer coisa de novo que não sei ainda dizer-te, digo-te que o céu se coloriu assim, por uma qualquer magia, para espelhar o que somos os dois, juntos.
Sorris, passas levemente a tua mão no meu rosto, também tu não entendes ainda. Aceitas o meu pensamento infantil de um sol que se compadece de um amor que nasce sem ter nome ainda.
Abraças-me, encostas os teus lábios aos meus e de olhos fechados sentes como me digo a ti. E esquecemos-nos os dois do sol, do céu e do mar.


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