segunda-feira, julho 13, 2020

Liberdade

Dizem que as fadas, aquelas que moram nos contos, só existiram há muito, muito tempo atrás, quando os homens não sabiam ainda que uma coisa chamada ciência iria aparecer e encontrar (ou pelo menos procurar) explicações para tudo o que se vive e sente.
Mas ontem veio visitar-me um ser encantado, e eu (que mais podia fazer?), fiquei a admirá-lo.

Parecido com um libélula (será uma?) perfeitamente simétrica, permaneceu horas a fio perto de mim.

Impressionou-me o sem manto negro e bordado, e quando me aproximei contou-me a sua história, que vos vou repetir, mesmo sabendo que, como já não há fadas, não vão acreditar em mim.

Ainda há poucos dias Liberdade, era esse o seu nome porque nasceu com os cravos de Abril, vivia segura do seu lugar no mundo, tranquila que estava nos passos que dava não se apercebeu que pouco a pouco se afastava do caminho que para si tinha traçado. E ela que habitualmente se via vestida do vermelho dos cravos, do azul do céu, e do verde da esperança, foi-se identificando com magníficos e cativantes tons de prata, e a prata vai bem com os cinzentos, e assim, sem mais, só por ter trajado de cinzento percebeu que tinha toda a vida perdido a delicadeza dos pormenores, e o que timidamente se passa nas sombras. A subtileza dos sorrisos, as pregas e tremores das vozes silenciadas, a ternura da partilha dos segredos.
Conseguiu, disse-me a Liberdade, nunca se aventurar demais no sombrio, o negro assustava-a, não por ser mau, mas por não saber o que lá estava. Crente que sempre foi da bondade humana, tinha dificuldade em conceber esse mal de que falam e que nas histórias de antigamente se transformava em monstros desconhecidos, como o abominável homem das neves, um vampiro, um lobisomem. Mas uma intuição qualquer manteve-a longe. Não, nunca foi o perigo que a atraiu, mas sim o sentir que na partilha das sombras se encontrava mais com a verdade humana.
Até que um dia encadeada que estava com o prateado de que se revestia, o pé lhe falhou. O que encontrou no negro não foi nada do que estava à espera. Encontrou zanga, raiva, rancor, desesperança, mas o que ocupava mais espaço era um imenso vazio sem nome, galopante, devorador, sem rosto nem forma, uma angústia que tudo suga como um buraco negro.  Aterrorizada petrificou, incapaz de se mover.
Foi então que uma luz de branco, vermelho, azul e verde pareceu poisar no seu ombro e lhe perguntou se queria recuperar a inocência perdida.
Teria de tomar a forma do mais simples dos seres, o seu único pedido foi que lhe devolvessem alguma espécie de liberdade, a única identidade a que se poderia agarrar.
E foi assim que se viu transformada num singelo ser alado, vestido de um manto leve, belo, mas negro, para não mais sentir a menor curiosidade sobre o imenso breu.

Depois de me contar a história deixou-se ficar, jantou connosco, partilhou as nossas conversas e os nossos risos, e só muito tarde, já noite escura, partiu. Nunca saberei para onde.

(fotografia tirada ontem no meu jardim ao final da tarde)
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PS - alguém sabe que bicho é este?

12 comentários:

  1. Um lindo texto com muito por dizer sobre a liberdade e tudo o que a rodeia. Fez-me pensar e é isso que procuro. Obrigado pela partilha.

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    1. A Liberdade terá tantas formas de expressão. Inclusive a de escolher ficar "preso" (a um lugar, ideia, pessoa, crença, ...)

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  2. Parece um objecto de Art Nouveau :)

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    1. Achei-a linda!
      A simetria perfeita. E as asas tão delicadas!

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    1. Pois talvez... deve haver várias espécies...
      Sempre vi as libelinhas de asas abertas, e imaginei que se as fechassem não seria assim.

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  4. Adorei a história que me prendeu do principio ao fim. Escreves super bem e obrigada:)

    É uma libélula portuguesa e sei porque no jardim da filha existem muitas e antes do anoitecer ficam assim numa de ganharem força para partirem noite dentro:) Há imensas nesta época principalmente quando há riachos por perto.

    Beijos e obrigado por este momento de sonho

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    1. Obrigada Fatyly.
      Andei à procura por aí e não encontrei em lado nenhum!

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    2. Tens aqui um artigo fantástico que tinha guardado:

      https://www.publico.pt/2013/11/18/ciencia/noticia/voando-com-as-libelulas-de-portugal-1612639

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    3. Também há um catalogo da gulbenkian que tem algumas imagens, Mas não encontro nenhuma semelhante a esta que aqui apareceu. As libelinhas quando fecham as asas não ficam assim , com as ditas ao longo do corpo, antes as juntam em cima (parece-me). Ontra coisa que achei diferente neta foram as mandibulas e as antenas, que são muito mais equenas nas libelinhas que estou habituada a ver.
      Mas obrigada Fatyly. não consegui ler o artigo todo porque está reservado a assinantes.

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  5. Nunca vi uma libélula assim, mas é possível que seja, faz sentido !
    Será que ela já te conhecia, para estar tanto tempo perto de ti ?
    Gostei da história !

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    1. Pois... eu também não...
      Se ela me conhecia... era uma relação unidirecional...
      :)
      Talvez conheça um dos outros elementos cá de casa. A cadela provavelmente!

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