Uma mulher (desnecessária) habita num prédio humilde de uma Beirute assoitada por guerras, chuvas, invernos, família e vizinhos.
Uma mulher que no fim da vida (por engano, é certo) pinta o seu cabelo de azul. Uma muçulmana, nos seus 70, cujo hijab deixa escapar uma ou outra madeixa tingida. Terá sido esta sua característica que fez com que o meu amigo Tomás me tenha enviado uma mensagem nada usual: “Bom Dia, aqui vai uma sugestão de leitura, não é uma obra prima mas estou a gostar muito. Bom Domingo ☺️”
Outra das suas características é ter dedicado a sua vida à literatura e à poesia. Todo o livro é um hino à escrita, ao poder transformador das obras literárias, que emprestam novas vidas, novos amores, novos cenários, novas realidades aos seus leitores. Esta mulher humilde e pouco instruída reinventa-se a partir de Fernando Pessoa (o autor mais citado), de Brodsky, Jane Austen, Dante, Proust, Sacher-Masoch, Faulkner, shakespear, Homero, Rilke, Dostoiévski, Coetzee, Lobo Antunes, Beckett, e tantos outros (senti-me muito ignorante e uma leitora medíocre face à imensidão mágica de mundos e personagens aludidos por Rabih Alameddine).
Paralelamente ao mundo a que os livros a levam (os livros são o seu amante a vida inteira) há a sua realidade. Os casamentos arranjados, a morte precoce do pai, os meio-irmãos, a Beirute esburacada pela guerra, as mulheres suas vizinhas, e a vida que se vai escuando.
Particularmente interessante a sua relação com a mãe, bastante idosa, e a sua elaboração sobre o seu próprio envelhecer, a dolorida antecipação da decadência a que o seu pensamento se recusa a maior parte do tempo a vislumbrar.
“Deve haver uma palavra numa língua qualquer que descreva a angústia que uma pessoa sente quando, de repente, se encontra cara a cara com o seu aterrador futuro. Não me ocorre nenhuma nas línguas que conheço.
(…)
Talvez essa palavra seja simplesmente <mãe>”
Um final que me deixou de coração apertado. Sobre a inutilidade da vida (a mulher desnecessária). A efemiridade das paixões. A pouca pegada que uma vida enorme, vivida interiormente, deixa.
Um escritor - homem - que cria uma personagem feminina. É sempre interessante ver com que traços um homem desenha uma mulher. Desta feita visitou-lhe a família e o intelecto, mas muito pouco a intimidade do corpo (fora o inusitado cabelo azul). Brilhante no intrincar do pensamento, na exploração da solidão, mas parco na relação com o corpo - o próprio e o do outro. Uma mulher que se esquece de si própria até se descobrir uma desconhecida no rosto enrugado reflectido num espelho baço.
Deixo-vos uma citação que tem tudo a ver com esta última semana da minha vida! 🙃
“O cabelo foi tosquiado, ou melhor, podado. Agora está branco, a geada da velhice. Não sei se pareço uma pessoa com cancro, uma terrorista das brigadas vermelhas dos anos 70 ou uma artista avant-garde, mas estou como nova, lá isso estou’”
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