domingo, março 06, 2022

E ouviu-se o hino!



Na passada 6.ª feira, depois de muito tempo, entrei numa sala de espetáculos.

Antes do início, num som quase inaudível para uma sala habituada à capacidade de projeção das grandes vozes e dos nobres instrumentos, foi anunciado que antes do concerto seria tocado o hino da Ucrânia.

Toda a sala se levantou - 1200 espectadores ouviram de pé a melodia que faz o que um hino faz: unir, congregar, com sentido patriótico uma nação. 

Provavelmente não estavam ucranianos na sala. 

Estávamos “nós”. Os que de longe, preocupados, angustiados, impotentes… e cómodos vamos ouvindo as notícias que chegam desse “longe” tão “perto”.

Nesses poucos minutos várias coisas me passaram pela cabeça:

- As imagens mais poéticas desta guerra - um soldado a declamar poesia sobre o amor e a morte em plena manobra militar. - mulheres ucranianas a alimentar um soldado russo tão jovem e a fazerem um telefonema à sua mãe garantindo-lhe que o filho está bem. - A população civil que foi para a rua tentar impedir que as forças russas chegassem à central nuclear.

- As imagens de que fujo intuitivamente, de obuses a explodir, de tanques a avançar lentamente, de corpos na rua, do terror espelhado nos rostos em fuga, da tristeza dos pais a despedirem-se das mulheres e dos filhos sem a certeza de algum dia os reencontrar. A guerra não tem nada de poético

- Todas as outras guerras de que ninguém fala: Yemen, Iraque, Congo, Líbia, Síria, … que fazem milhões de refugiados, que matam todos os dias centenas, milhares, mas que não beliscando a Europa, e não representando uma ameaça nuclear, ficam confortavelmente fora dos escaparates.

- E a forma que temos de através destas manifestações - o tocar do hino, as concentrações em frente aos órgãos de poder, as bandeiras nos perfies, as cores ucranianas nos monumentos, … - de dizermos uns aos outros que nos importamos mas que não estamos lá. E que a esmagadora maioria de nós não quer estar lá. Que tudo em nós rejeita a ideia do conflito armado face ao qual somos todos meninos. Que o sofrimento nos comove mas que fugimos dele como podemos. Que a nossa vida continua, com viagens, concertos, leituras, com os nossos pequenos dramas pessoais. 

Mas tocamos o hino da Ucrânia…

Como quem sabe que a guerra está próxima mas suficientemente distante para que nos possamos dedicar ao prazer do espectáculo que vamos iniciar.

A ambiguidade humana.

Eros e Thanatos.

E a culpabilidade (legítima e natural) mitigada com o pôrmos em comum, durante os breves momentos de um hino, toda a preocupação que nos acompanha nos últimos dias.

Depois…

Siga a música!



3 comentários:

  1. O cidadão comum não pode fazer mais nada.
    E essa sensação de impotência incomoda muito.
    Boa semana

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  2. Sim outras guerras continuam há anos e anos e pouco ou nada se faz ou mostram. Perante todas e mais esta feita por um louco, como meros peões que somos de um mundo enlouquecido, não podemos fazer nada!
    Custa-me ver as imagens porque passei o mesmo e muitos que falam não sentiram na pele o desastre da colonização. Gostei do texto e oxalá que tudo passe rápido embora diga que o mundo mudou.
    Beijocas e um bom dia

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  3. Tens toda a razão. Mas é suposto ser assim mesmo. Temos de seguir com as nossas vidas. Vidas essas situadas noutra realidade. Até mesmo os Ucranianos, quando na emin~encia de uma invasão, se recusaram a acreditar nela até que o momento não dava para negar mais. O mesmo fizeram tantos judeus, na segunda guerra mundial diante da ameaça Nazi. Muitos achavam impossível que lhes tirassem as casas, as posses e fossem fazer o que lhes fizeram. Até ser tarde demais.

    Faz parte da natureza humana, querer acreditar no melhor, mesmo diante do pior e levar a vida como se nenhuma ameaça fosse ainda sinal de que algo mau está no horizonte.

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